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A literatura e os filmes de ação consagraram o agente secreto britânico James Bond, conhecido também pelo codinome 007, código que referendava a ele uma suposta ‘licença para matar’ – que inclusive se tornou título de uma de suas películas. No Brasil, o ministro da Justiça Sérgio Moro indica que deseja tirar o personagem da ficção e incluí-lo na rotina da segurança de periferias e áreas pobres.
Diante da incredulidade de especialistas, a pergunta que fica é: a proposta anticrime apresentada o ex-juiz federal seria de fato uma senha para a barbárie institucionalizada? O programa Faixa Livre convidou para debater o tema o advogado e vice-presidente da Comissão de Segurança Pública da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OAB-RJ) Diogo Flora, o secretário-geral da Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) Filipe dos Anjos e coronel da reserva da Polícia Militar Ibis Pereira.
Divulgado na última segunda-feira (04), o documento de 35 páginas propõe mudanças no Código Penal e a alteração de 14 leis visando uma maior efetividade no combate a três frentes: corrupção, crime organizado e crimes violentos.
Apesar das modificações, o projeto não mexe naquela que é considerada pelo coronel da reserva a principal demanda para a diminuição dos índices de violência no país: a lei nº 13 675, que criou a Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social (PNSPDS) e institui o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) em 2018.
“A Constituição que temos é a primeira com um capítulo sobre segurança pública. Levamos 30 anos para regulamentar essa Constituição e quando decidimos fazê-lo, fizemos em ano de eleição uma legislação como essa, na sua complexidade, que mexe com as polícias, que são instituições poderosas, com lobbies corporativos muito fortes. O resultado foi uma legislação ruim, que deveria transformar todos os órgãos de segurança em um sistema único”, apontou Ibis.
Um dos principais pontos criticados pela opinião pública é a proposta de alteração do artigo 23 da Lei Penal, que trata da exclusão de ilicitude, ocasiões onde o agente público não pode ser punido mesmo que cometa um assassinato ou lesão corporal. O novo texto exime de punibilidade o policial que alegar ter agido sob “medo, surpresa ou violenta emoção”, subjetivando tal julgamento.
“Fiquei muito decepcionado. Acho que o projeto tem dispositivos que preocupam pela releitura que faz de excludente de ilicitude. Se você somar a isso um governo que assumiu e o primeiro movimento que fez foi de flexibilizar a posse de armas, não apresenta nenhum tipo de planejamento estruturante para a segurança pública, se elege como discurso beligerante, me parece que isso é a antessala do próximo movimento que, não tenho dúvida, será flexibilizar o porte de armas”, alertou o policial.
“A versão dada pelo policial é legitimada por todas as etapas do processo, pelo delegado, pelo promotor de justiça, pelo juiz, como se fosse fala única. Então os maus policiais se sentem livres para cometer homicídios” – Diogo Flora
Alvos constantes de ações policiais repressivas, as favelas e periferias devem ser as principais afetadas pela alteração da legislação, caso seja aprovada pelo Congresso. A população dessas regiões convive diariamente com o clima de Estado de exceção e teme o aumento do número de mortes provocadas por PM’s.
“A questão da democracia é amplamente debatida dentro das favelas porque convivemos com o braço armado da polícia, com as diversas facções criminosas e o nosso direito de ir e vir não é garantido. Essa medida não nos atende de nenhuma forma. As operações policiais dentro da favela são inúteis, para enxugar gelo, não apresentam nenhum resultado à sociedade. Quando apreendem drogas, armas e munições é uma quantidade mínima, a capacidade logística que essas facções têm de conseguir mais é enorme, e nesse pacote anticrime não temos nada disso”, avisou o dirigente da Faferj.
Do ponto de vista legal, o advogado e membro da OAB chegou a cogitar que o ex-juiz federal queira fazer referência a um trecho de uma legislação do século XIX para legitimar assassinatos.
“Esse projeto começa partindo de premissas equivocadas em relação à legítima defesa. O que me parece é que o Moro tentar ressuscitar o que conhecemos como uma legítima defesa presumida, que é o caso que doutrinariamente conhecemos como do ‘ladrão noturno’, uma previsão do Código Penal de 1890”, avaliou, rememorando a condição legal para crimes cometidos em caso de ‘violação da fé conjugal’.
“Filosofia da guerra que é adotada transforma as pessoas em número. Dar esse tom de guerra nada mais é que fazer política através da força, numa guerra de morte são aceitáveis” – Filipe dos Anjos
Os dados da violência no Brasil apontam para números alarmantes. Em 2017, foram registradas 63 880 mortes violentas intencionais, o que representa 175 assassinatos por dia em todo país, de acordo com números do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Já a 29ª edição do Relatório Mundial de Direitos Humanos, divulgado pela organização não governamental Human Rights Watch (HRW), mostra que a letalidade policial aumentou em 44% após a intervenção federal no Rio de Janeiro, entre fevereiro e dezembro do ano passado.
A tendência, de acordo com Diogo Flora, é que em se levando a conduta de agentes públicos para o plano abstrato, os índices de violência aumentem exponencialmente:
“O maior perigo é colocar a decisão de uma legítima defesa nesse plano subjetivo, inclusive a doutrina jurídica não usa a palavra medo, usa perturbação do ânimo, que é um conceito que vem sendo trabalhado há mais tempo e conseguimos delimitar melhor. Qualquer lei penal que tenha caráter subjetivo é ruim”.
Uma dos artifícios utilizados por policiais para justificar assassinatos é o estabelecimento do ‘auto de resistência’, registro onde o servidor de segurança alega ter revidado a um ataque que pôs sua vida ou de terceiros em risco.
Entretanto, a veracidade da argumentação é posta em dúvida por Filipe dos Anjos. Para ele, na maioria dos casos, tal situação é forjada para se evitar punição.
“Quantas vezes esse auto de resistência, que é um documento da ditadura militar para dar segurança ao agente que mata, não foi fraudado? Quantas vezes essas pessoas executadas são colocadas como auto de resistência? E voltamos para políticas como a gratificação faroeste na década de 1990, que dava licença para policial matar e só aumentou ainda mais a violência”, lembrou, citando o encargo especial criado no Rio de Janeiro que premiava policiais civis e militares cujo desempenho fosse bem avaliado.
“O crime organizado está na compra e distribuição de drogas. Olhar para um garoto descalço e semianalfabeto na favela e achar que esse tipo faz parte de uma facção do crime organizado é ser muito cretino” – Ibis Pereira
O ministro da Justiça esteve no Senado esta semana para apresentar o projeto, mas se recusou a responder questionamentos dos parlamentares. A falta de diálogo com a sociedade civil foi outro motivo de crítica às modificações propostas por Sérgio Moro.
“Normalmente quando se faz uma reforma penal, se ouve uma comissão de juristas, a Academia, temos pessoas super qualificados que podem contribuir nessa produção legislativa e isso não aconteceu, o Moro tirou o pacote da cabeça dele. Precisamos no Brasil de medidas que reduzam a inserção do Estado, essa percepção penal, que promovam o desencarceramento porque já percebemos que não é a solução”, salientou Diogo.
“Não há condição de se resolver o problema da corrupção sem ouvir a população. Precisamos de um espaço para sermos ouvidos. O ministro da Justiça não pode chegar com um pacote pronto sem ouvir a população, a OAB, os profissionais da segurança pública, é um absurdo”, referendou o dirigente da Faferj.
Na última legislatura, uma Comissão Especial foi criada na Câmara dos Deputados a fim de discutir a unificação das polícias civil e militar no país, ideia defendida também pelo ex-juiz federal agora titular da pasta da Justiça. Na ocasião, chegou a ser redigida uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) sugerindo a mudança.
O coronel da reserva não crê na necessidade de se unir as corporações, mas pondera que falta troca de informações entre os órgãos públicos de segurança, demanda que não foi resolvida com a criação do Susp.
“Não defendo a unificação, o modelo policial ou de justiça criminal é o que funcionam e não tem receita de bolo. O nosso não funciona apenas porque temos atribuições policiais fragmentadas, ou seja, a investigação descolada do patrulhamento. As polícias não se comunicam por falta de estrutura, não há sistema, nada que obrigue, elas não estão condicionadas por um modelo orgânico estrutural, não são obrigadas, por exemplo, a dividirem seus bancos de dados, a não ser pelo voluntarismo”, ponderou.
Ouça abaixo o debate na íntegra:
Debate em 08.02.2019