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O que é possível fazer em pouco menos de 60 dias? Um bimestre escolar, uma comissão parlamentar, uma campanha eleitoral… Este tempo foi suficiente para o presidente Jair Bolsonaro demonstrar incompetência administrativa, levantar suspeitas de envolvimento com negociatas e evidenciar seu grau de comprometimento com o capital financeiro.
Mas o que levou a este quadro de anomia política em um período tão curto? O professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) Daniel Aarão Reis, o sociólogo e assessor do Instituto de Estudos da Religião (Iser) Ivo Lesbaupin e o vice-presidente da Associação de Funcionários do BNDES (AFBNDES) Arthur Koblitz foram convidados pelo programa Faixa Livre para oferecerem um diagnóstico.
A receita para o fracasso da gestão do ex-capitão do Exército estava posta desde o pleito do ano passado, onde Bolsonaro foi eleito sob a égide do combate à corrupção e diminuição dos índices de violência, adotando um discurso vago que arrebatou pouco mais de 57 milhões de votos do eleitorado brasileiro no segundo turno
“Não podemos esquecer que Bolsonaro ganhou essas eleições praticamente sem definir um programa, até mesmo referências gerais eram formuladas de maneira um tanto quanto confusas, e isso, se você soma ao fato de que se trata de um governo com relativo alto nível de heterogeneidade e falta de experiência na condução dos negócios públicos, há um conjunto de condições que pode nos esclarecer um pouco a respeito dessas confusões que têm prejudicado a ação do governo nesses primeiros dois meses”, apontou Aarão.
Como parte desse núcleo governamental difuso, a atual gestão do Palácio do Planalto carrega uma característica inédita na história da República no Brasil: a influência de um clã orbitando a presidência.
Com três filhos parlamentares, Jair Bolsonaro se vê em apuros com os holofotes atualmente voltados para dois deles: Carlos, vereador no Rio de Janeiro, protagonista da última polêmica que envolveu o desmentido ao ex-ministro da Secretaria de Governo e aliado de primeira hora do mandatário Gustavo Bebianno, e Flávio, supostamente envolvido com um grupo de milicianos na capital fluminense que teria executado Marielle Franco e Anderson Gomes.
Apesar de os primogênitos aparentarem uma ação independente, estratégia utilizada pelo presidente buscando certo afastamento, Arthur Koblitz observa uma conduta orquestrada entre os membros do seio familiar.
“O Bebianno afirma que o Carlos era usado pelo Bolsonaro. Quem comandava esse esquema era o Bolsonaro usando os filhos. Nessa direção há uma coordenação, não é essa história que principalmente a direita está falando. Se o Flávio tem contatos com a milícia, de quem ele herdou os contatos? A ideia de que há filhos desajustados que interferem na presidência é equivocada. O desajuste está na família e no chefe dela”, ressaltou.
A ausência de um plano para gerir o país é outra crítica comum à equipe de Jair Bolsonaro, a ponto de o assessor do Iser acreditar se tratar de uma iniciativa deliberada para ocultar seu caráter rentista:
“Não vemos as lideranças de oposição aparecerem marcando posição, definindo plataformas alternativas, fazendo críticas ao governo” – Daniel Aarão Reis
“A falta de preparação de programa desse governo eu pensava que era uma tática: ‘durante a campanha eleitoral não vamos fazer nosso programa, utilizamos a facada para evitar ir aos debates porque temos um programa que é prejudicial para a maioria da população, não vamos expor’. Quando começou o governo, tinha certeza que pelo menos a reforma da Previdência ele já tinha pronta, e passam semanas com os jornais tentando entender qual é o conteúdo dessa reforma, que só soubemos quando foi entregue na Câmara dos Deputados”.
O projeto que altera as regras de aposentadoria no Brasil, colocado pelo governo como uma iniciativa necessária para reduzir as desigualdades, apenas amplia o abismo que existe entre as parcelas mais abastadas da população e os que vivem em um cenário de miserabilidade.
Ivo Lesbaupin chegou a se referir a um artigo publicado pelo economista Paulo Kliass, onde ele cita que o Estado pagou nos últimos 20 anos R$ 5 trilhões em juros da dívida pública, o quíntuplo do que o ministro da Economia Paulo Guedes pretende economizar com a reforma da Previdência na próxima década.
“Quem está assistindo, vê que boa parte da reforma vai atingir os mais pobres, não vai atingir a elite do funcionalismo público apenas. Os jornais dizem que o maior gasto público do Brasil é a Previdência, com 28% do orçamento, mas os dados da Auditoria Cidadã da Dívida mostram que 40% são gastos pela dívida pública, Não há política econômica prevista para melhorar o quadro”, disse.
O desencontro da cúpula governista se reflete na política adotada pela nova direção das empresas estatais, como é o caso do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
“Sentimos agora o efeito de ter um governo com programa muito pouco definido. No BNDES, a impressão que tivemos foi essa. No primeiro contato com a nova administração, chegaram a falar coisas que dão a impressão de que estão querendo entender o que podem fazer com o BNDES. Uma vez que souberem o que podem fazer, vão definir a estrutura. Imagina alguém que é responsável por uma organização e fala para seus subordinados ‘quero que vocês me convençam para que serve essa organização. Não sou inimigo de vocês, se me convencerem qual é a utilidade, posso até defender’. O governo parece que não tem um programa pronto, mesmo na questão das privatizações, em um primeiro contato parecia que não estava claro o quanto BNDES poderia agir”, confidenciou Koblitz.
“Com as trapalhadas de Bolsonaro no governo, só podia ser eleito se tirasse o candidato que ganharia a disputa” – Ivo Lesbaupin
A atuação do ministério das Relações Exteriores neste início de gestão é fator de desequilíbrio de uma tradição centenária do Itamaraty, conhecido historicamente por buscar a diplomacia em detrimento aos conflitos.
A aproximação do titular da pasta Ernesto Araújo com o governo dos Estados Unidos se estendeu às Forças Armadas e provocou uma situação inédita: a nomeação de um general brasileiro para integrar o Comando Sul do Exército estadunidense.
“Acho grave essa denúncia, ficamos sabendo através do depoimento de um militar para o Congresso americano. A decisão de enviar esse general não passou pelo Congresso brasileiro, não há precedentes na história do país, existe a sinalização de que pode estar vinculada à intervenção na Venezuela”, acusou o vice-presidente da AFBNDES.
A situação no país vizinho, aliás, vem se deteriorando a cada dia. O anúncio do presidente venezuelano Nicolás Maduro do fechamento da fronteira com o Brasil na última quinta-feira (21) demonstra o nível de acirramento com o governo Bolsonaro.
“A Venezuela está à beira de uma guerra civil e o Brasil, em função das articulações que estão sendo empreendidas, pode estar envolvido nesse processo. Muitos oposicionistas ao governo Maduro esperam uma desagregação fulminante das Forças Armadas venezuelanas a seu favor e isso é possível em termos de história da América Latina. Há um estímulo da ultradireita para que a situação evolua para uma explosão, são aventureiros que tomaram o poder dos Estados Unidos e apostam na radicalização das crises em torno de seus valores e suas políticas, e o Brasil pode ser arrastado para isso”, comentou Aarão.
“Paulo Guedes acha que todo problema econômico do Brasil está ligado ao gasto público. É uma análise um tanto tosca” – Arthur Koblitz
O posicionamento tímido dos partidos que contestam o alinhamento ideológico de Jair Bolsonaro à extrema-direita incomoda boa parte dos analistas de política.
“Veja as oposições mudas, está mais do que na hora de começarmos uma grande campanha para tirarem as mãos de cima da Venezuela, de evitar uma guerra que pode ser desastrosa em todos os níveis não só para a Venezuela, como para toda região, com consequências imprevisíveis para o Brasil”, ressaltou o professor.
Nem mesmo o Sínodo da Amazônia, reunião de bispos da Igreja Católica que ocorrerá em outubro, no Vaticano, para discutir a preservação da maior floresta tropical do mundo, escapa aos olhos do governo. Bolsonaro considera que o encontro é uma agressão à soberania nacional.
O jornal O Estado de S. Paulo divulgou reportagem sobre uma possível investigação da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência sobre o evento convocado pelo Papa Francisco.
“O sínodo é uma reunião de 250 bispos de todo mundo, especialmente dos bispos dos nove países que fazem parte da Amazônia para discutir especialmente a questão da proteção dos povos indígenas, dos ribeirinhos, de quem vive nessas regiões e está sendo afastado. O governo sabe que é uma reunião interna de bispos, é um absurdo que estão fazendo algo tipicamente da ditadura militar em ficar monitorando a igreja”, avaliou Lesbaupin.
Ouça o debate na íntegra:
Debate em 22.02.2019