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Editorial – 19.03.2019

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Bom, amigos, nos últimos anos tem crescido muito a importância das chamadas lutas identitárias, são lutas em defesa das mulheres, dos negros, dos homossexuais, inclusive organizando seus próprios grupos etc. Isso é muito positivo, mas essa luta tem atingido, às vezes, contornos preocupantes. Por exemplo, no ato que marcou o aniversário de um ano da morte da Marielle, foram impedidos de usar a palavra oradores que fossem brancos e homens, porque a Marielle era mulher e negra. Isso me parece uma coisa ruim.

 

A esse respeito, escrevi um artigo, que foi publicado ontem na revista Fórum, cujo título é “Reflexões sobre as lutas identitárias”. Vou ler esse artigo hoje como nosso comentário inicial do programa. Começa ele assim:

 

Depois que Bolsonaro reconheceu o autoproclamado Juan Guaidó como presidente da Venezuela, o ator José de Abreu também se autoproclamar presidente do Brasil. Foi uma boa sacação. O capitão mordeu a isca e ameaçou processar Abreu. Achei ótimo. Adoraria que a história – digna de Sucupira, cenário do seriado “O Bem Amado”, de Dias Gomes – fosse adiante. Com Bolsonaro no papel de Odorico Paraguassu.

 

Mas as coisas não são, assim, tão simples.

 

No último dia 8 de março, Abreu foi saudado com gritos de “presidente” por um grande número de militantes. no bar Amarelinho, depois da manifestação das mulheres. Mas houve quem o criticasse.

 

Era o Dia Internacional da Mulher (ou o 8M, como agora dizem os iniciados). E algumas ativistas viram oportunismo político no gesto de Abreu. Para elas, naquele dia só deveria haver manifestações relacionadas com a luta das mulheres.

 

No mesmo dia foi ensaiada uma vaia à deputada Jandira Feghali quando, num discurso, ela saudou os “homens feministas”. Na opinião de certas ativistas, é impossível haver homens feministas. Existem apenas mulheres feministas, pois só elas sofrem diretamente a opressão de gênero.

 

É uma opinião. Haverá quem concorde e quem não concorde com ela. Assim são as coisas. Pena que essa opinião se expressasse ali sob a forma de vaias num ato unitário. Assim, o que poderia ser só uma questão semântica ganha importância política, pois, em nome do tal “lugar de fala”, se ensaia uma tentativa de impedir a participação de homens na luta contra o machismo.

 

Há outros exemplos de sectarismo e, até, de falta de civilidade da parte de ativistas das tais pautas identitárias. Tem havido casos de mulheres brancas abordadas por ativistas do movimento negro para que tirem os turbantes. Segundo as ativistas, apenas negras têm o direito de usar o adereço.

 

Mais. No dia 14 de março, parlamentares brancos e do sexo masculino foram proibidos discursar no ato pelo aniversário da morte de Marielle Franco. Mesmo aqueles sabidamente próximos a ela, pessoal e politicamente, tiveram sua participação vetada. Ora, Marielle foi morta por milicianos. Aceitar o discurso de que houve um “crime de ódio”, por ela ser mulher e negra, é engolir uma versão cômoda para os algozes. Afinal, crime de ódio aponta para um ato isolado, sem mandantes.

 

Mas, ainda assim, mesmo que tivesse sido um crime de ódio contra mulheres negras, por que vetar oradores homens e brancos?

 

Levando-se ao pé da letra este raciocínio, chega-se a situações absurdas. Levando-se ao extremo, cabe a pergunta: quem na infância não foi vítima de pedófilos pode, depois, estar na linha de frente do combate à pedofilia?

 

E o que dizer de boa parte da obra de Chico Buarque de Holanda que, com extrema sensibilidade, retrata o universo feminino e os sentimentos de mulheres? Como fica o tal “lugar de fala”?

 

A propósito, vale ver o que disse outro artista, o escritor moçambicano Mia Couto, ao ser perguntado se era cobrado por escrever sobre negros, sendo ele branco e filho de portugueses.

 

“Esse é um debate novo, mesmo no Brasil. É uma coisa que vocês estão a importar de algum lado, não sei de onde, mas desconfio. Mas há também escritores negros que se colocam na posição de brancos. Aliás, a escrita se for interrogada desse ponto de vista de lugar de fala, ela morre. Eu só escrevo porque eu viajo para outros. Eu sou mulher, eu sou criança, eu sou velho, eu sou outros quando escrevo. Se eu só posso escrever naquela competência do meu lugar de fala (…), eu só falo sobre mim. O que cria a literatura é essa capacidade de ser um outro”.

 

Na lista de absurdos a que se poderia chegar, ocupa lugar de destaque Friedrich Engels, com a sua obra “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, escrita no século XIX. O livro tornou-se um relato clássico sobre as condições de vida dos trabalhadores com a revolução industrial. Engels mostra que a taxa de mortalidade em Manchester e Liverpool, o coração industrial da Inglaterra, tornou-se mais elevada do que no resto do país.

 

Era o jovem capitalismo abrindo caminho a ferro e fogo.

 

Pois bem, Engels era filho de um próspero industrial, embora tenha dedicado a vida à luta dos trabalhadores, sendo o mais próximo companheiro de lutas de Karl Marx. Mas talvez fosse hoje alvo de ataques dos defensores do “lugar de fala”. Afinal, não sofria na pele a opressão do capital.

 

A rigor, o próprio Marx poderia ser alvejado. No “Capital” ele também denuncia duramente as condições de trabalho dos operários e retrata de forma crua o sacrifício de milhões de seres humanos para a acumulação primitiva do capital.

 

Não vejo como atributo revolucionário alguém ser negro, mulher ou homossexual. Aliás, vale a pena dar uma olhada no que são as “bancadas” de negros ou de mulheres na Câmara dos Deputados. Elas não destoam da média. São conservadoras.

 

E nem falo, aqui, da “bancada” de homossexuais, porque entre 513 deputados, apenas Jean Wyllys se assumia como tal. Agora, com o seu exílio, o lugar foi ocupado por David Miranda. Os demais deputados homossexuais – e certamente eles existem – preferem não se assumir como tal. Tudo bem. É direito deles.

 

A agressividade de certos ativistas de movimentos de pautas identitárias é de tal ordem que intimida muita gente. Por incrível que pareça, há quem se acovarde e só expresse sua verdadeira opinião em círculos restritos, nos quais sabe que não será chamado de machista ou racista.

 

Saúdo a combatividade das feministas que criticaram Zé de Abreu e vaiaram Jandira. Não, claro, pela crítica e pela vaia. Mas porque lutam contra a opressão das mulheres. Somos aliados, queiram elas ou não.

 

Da mesma forma, saúdo a combatividade de quem pretende o monopólio do uso de turbantes aos negros. Não por concordar com isso. Mas porque estamos juntos na luta conta o racismo.

 

Sou branco, homem e heterossexual e tenho origem numa família de classe média. E luto contra toda forma de opressão, não aceitando depender da autorização de alguém para isso.

Mais: tenho a certeza de que a adesão de pessoas com perfil semelhante ao meu ajuda a luta das mulheres, dos negros e dos homossexuais.

 

É positivo que os oprimidos pela cor da pele, pelo gênero ou pela orientação sexual se levantem. É natural que tenham protagonismo nessas lutas específicas. Mas é positivo que elas contem com o mais amplo apoio.

 

Até porque, além dessas lutas deverem se articular com o combate pelo aprofundamento da democracia e pelo socialismo, elas não são só dos segmentos diretamente afetados.

 

Como toda e qualquer luta contra a opressão, são lutas da Humanidade.

 

Ouça o comentário de Cid Benjamin:

 

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