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O reflexo de uma sociedade desigual, preconceituosa, que criminaliza a pobreza e onde o Estado só acessa as favelas com seu braço armado é a ampliação dos episódios de violência urbana patrocinada por múltiplos atores, mas onde as forças de segurança, em especial as polícias, exercem um papel de protagonismo.
Aliado a isso, há a corrupção estrutural que levou ao surgimento do fenômeno das milícias, agentes do Estado que ‘oferecem’ proteção e serviços aos moradores em troca de pagamento, em disputa – e em algumas localidades, em conjunto – com o crime organizado nas comunidades e bairros da periferia das grandes cidades, com destaque para o Rio de Janeiro. O que podemos fazer para diminuir os índices de criminalidade que têm como alvos preferenciais a população preta, pobre e periférica?
Nos debates especiais de fim de ano, o programa Faixa Livre convidou para responder a essa e outras questões o delegado de Polícia Civil Vinícius George, a coordenadora do Eixo Direito á Segurança Pública e Acesso à Justiça da ONG Redes da Maré Lidiane Malanquini, o secretário-geral da Federação das Associações das Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj) Filipe dos Anjos e o sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) José Cláudio Souza Alves.
A origem do processo de isolamento e extermínio das populações desvalidas no país é antiga e remete à abolição da escravatura, no final do século XIX, quando os negros ‘libertos’ acabaram à própria sorte e, sem o estabelecimento de políticas públicas de inclusão social e habitação, se sujeitaram a fixar moradia nos morros, dando origem às favelas.
Desde então, o descaso com o povo humilde se manteve e ganhou apoio de parcelas mais abastadas da sociedade, que passaram a enxergar os moradores de comunidades como um risco e validaram a violência estatal. Nem mesmo a redemocratização, em meados dos anos 1980, foi capaz de alterar esse cenário.
“Mudanças significativa nós tivemos poucas. O que a gente precisa mesmo é de um projeto de nação que inclua o povo favelado. Se a gente retomar um pouco da História, o Brasil leva um golpe em 1964 justamente quando João Goulart lança as reformas de base. Se você analisar, não havia nada sobre favela, mas aquelas reformas para o Brasil, que falava muito do déficit habitacional, de reforma agrária, já seriam uma revolução. Durante todos esses anos não houve, de fato, uma política para redução da dramática desigualdade social, o Brasil é o segundo país do mundo em desigualdade social”, avaliou Filipe.
No Rio de Janeiro, uma das experiências para a diminuição da violência na última década foi a implantação de um projeto de polícia de proximidade, as chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Idealizadas pelo governador Sérgio Cabral, hoje preso, as UPP’s foram perdendo espaço ao longo do tempo e não se formou um diagnóstico definitivo sobre sua efetividade. O que não mudou foi a atitude dos órgãos de segurança.
“Não tem como a gente falar se deu certo, se deu errado, por que deu errado. Foi a tentativa de uma polícia de comunidade, mas com a mesma estrutura, o mesmo modelo policial e o mesmo olhar sobre a favela. Havia, na verdade, uma corporação que atuava naquele território muitas vezes na busca de inimigos. Se a gente não mudar o paradigma e olhar a favela não como um espaço de criminalidade, de violência, a atuação dos agentes públicos continuará da mesma forma”, afirmou Lidiane.
“Se você observar, houve uma redução dos homicídios e dos confrontos armados nas favelas em 2008, que obviamente impacta na sensação de segurança de quem vive ali, mas, ao mesmo tempo, a atuação da polícia continuou reforçando uma lógica da população pobre, negra e favelada como inimiga, a busca de um inimigo nesses territórios e menos uma perspectiva de garantia de direitos. Não sei se é um problema da polícia, acho que é um problema da forma como a sociedade vê a favela”, prosseguiu.
A coordenadora do Redes da Maré fez questão de eximir o aparato policial da responsabilidade exclusiva pelo recrudescimento das ações repressivas contra os moradores das comunidades, discurso corroborado por Vinícius George. O delegado lembrou que a população fluminense escolheu nas urnas manter a dialética da violência do Estado, com a ascensão de Wilson Witzel ao Palácio Guanabara.
“A polícia reflete a sociedade. Se você quer ver o grau de civilização de uma sociedade, olhe para suas cadeias, para sua polícia, é uma face muito sensível disso. Nós escolhemos atirar na cabecinha, democrática e eleitoralmente, não podemos nos esquecer isso. A questão transcende a polícia, temos de chegar à nossa parcela de responsabilidade. A polícia é uma ferramenta de um Estado violento, corrupto, mas temos liberdade de informação. Nós votamos de dois em dois anos, temos pleno exercício de cidadania. Quando não exercemos é porque não queremos. Nos omitimos intencionalmente, somos corresponsáveis por esse processo”, alertou.
A integração dos moradores das favelas com medidas de fomento à cultura, o acesso à saúde, educação, saneamento básico, o respeito aos direitos consagrados pela Constituição foram citados por José Cláudio como fundamentais para mudança desta realidade.
O incremento de intervenções de coerção das diferentes esferas de governo, como as Unidades de Polícia Pacificadora, institui, na opinião do sociólogo, um novo personagem na organização de poder existente nas regiões pobres das cidades.
“Se você não permitir essa construção e instalar uma UPP é inverter tudo, é colocar mais um dono no morro, mais um cara que vai dominar aquela realidade, vai impor com violência sua lógica e foi isso que as UPP’s fizeram, se impuseram sobre as comunidades como mais um dono daquela realidade, junto com o tráfico, a milícia. Temos uma realidade brutal e violenta que atinge a população. As instituições precisam ser completamente refeitas”, citou.
Especialista no estudo das organizações criminosas formadas por integrantes das forças de segurança do Estado, o professor da UFRRJ destacou a longevidade do uso da força contra a ala mais vulnerável do povo do Rio de Janeiro, colocando-a como culpada pelo avanço das milícias.
“A milícia que emerge do aparelho policial é construída ao longo de décadas no uso da violência sobre essa população. Eles são especialistas em matar pessoas, é assim que se constituiu a polícia no Rio de Janeiro. O Witzel para se eleger dizendo que vai matar as pessoas é porque já há cinco décadas de construção de uma política de segurança baseada em matar pessoas nessa áreas. Isso fortalece os grupos milicianos, eles se expandem e crescem cada vez mais”, relatou.
O representante da Faferj admitiu que há problemas na militância por direitos humanos nas organizações da sociedade civil. A proximidade das eleições municipais na tentativa de se escolher representantes que apostem na inclusão social como alternativa para a repressão imposta não anima Filipe dos Anjos, ao constatar que o afastamento dos partidos políticos, inclusive do espectro progressista, das favelas é latente.
“Não temos nenhuma culpa, mas temos responsabilidade. Sou do movimento das associações de moradores, que passa por uma dificuldade tremenda. Muitas lideranças comunitárias estão nas mãos de partidos políticos que não têm compromisso com o povo, que apoiaram o Crivella e agora, no colapso da saúde, essas lideranças somem e eu tenho responsabilidade sobre isso”, assumiu.
“A situação é dramática. É muito difícil trabalhar essa conscientização para a eleição, não digo nem uma conscientização maior de um projeto de país que a gente queira, que é um processo muito mais longo. Ainda não estou vendo um movimento real da gente dialogar com esse povo de forma séria, sincera”, continuou.
O racismo estrutural aparece como mais um componente dessa tragédia social. A conformação das instituições públicas, que segregou negros historicamente, acaba sendo exposta na atuação dos órgãos de segurança pública.
“A polícia e o Judiciário fazem parte desse Estado. Ele se constitui de uma forma elitista, de um lado, e excludente, do outro, o corte racista é caríssimo nessa história e está aí até hoje. A gente enxerga muito bem a ponta inicial desse sistema, que é a polícia, mas ele começa com a polícia, passa pelo Ministério Público, pelo Judiciário e termina nos vários presídios”, constatou o delegado.
Ouça o debate na íntegra: