Preencha os campos abaixo para submeter seu pedido de música:
Por Daniel Aarão Reis*
Neste 31 de maio de março de 2020, somos quase que obrigados a pensar na ditadura instaurada há 56 anos no Brasil em 31 de março de 1964, e tanto somos obrigados porque crescem em termos oficiais, depois da eleição do Bolsonaro, as comemorações festivas que se multiplicam, inclusive podemos constatar a nota do ministro da Defesa negando a instauração da ditadura e metamorfoseando sua instauração como uma luta pela democracia. O repúdio, a crítica à ditadura deve ser cada vez mais promovida por todas as forças democráticas, mostrando como um golpe de Estado é um golpe de Estado.
O presidente da República democraticamente eleito foi derrubado pela violência, isso não pode ser negado e posteriormente, também ao longo de toda ditadura, sobretudo depois do Ato Institucional número 5, em 1968, o parlamento foi dissolvido, os tribunais foram subordinados, as liberdades desapareceram completamente, a tortura virou uma prática comum, uma política de Estado, de sorte que isso tudo tem de ser dito com todo o vigor possível.
A denúncia da ditadura, sempre que for possível, deve ser formulada explicando-se sobretudo às novas gerações e às crianças, principalmente, que viver sem liberdade, seja o que for que te derem em troca, não vale a pena. A liberdade é um bem supremo, os valores democráticos são valores universais, permanentes, que não devem ser postos em risco, sob pena de você ter uma sociedade encolhida, acovardada, acocorada, sem noção de cidadania, que é algo absolutamente essencial para que possamos ter uma sociedade digna desse nome e em que as pessoas possam desenvolver na plenitude as suas faculdades.
A denúncia da ditadura é uma questão atualíssima nesse 31 de março. Por outro lado, também precisamos compreender melhor como essa ditadura se instaurou no Brasil, inclusive porque ela foi a segunda ditadura depois dos anos 1930 do século XX. Tivemos duas ditaduras no Brasil: o Estado Novo, entre 1937 e 1945, e a ditadura civil-militar inaugurada em 1964 e que se prolongou até 1985. A meu ver, desde 1979 não tínhamos propriamente uma ditadura porque o estado de exceção tinha desaparecido, mas é voz corrente entre os historiadores que a ditadura se prolonga até o fim do mandato do último presidente militar, João Figueiredo.
Por que aconteceu isso? Por que o Brasil no seu processo de modernização teve de passar por duas ditaduras, a do Estado Novo e a civil-militar inaugurada em 1964 e que foi até 1985? Duas ditaduras que não foram curtas em duração e precisamos pensar melhor a respeito disso. Por que elas se impuseram? Inclusive por que se impuseram quase sem resistência e por que elas desapareceram quase sem luta? A de Vargas por um golpe de Estado e a última que tivemos através de um processo de negociação prolongado. Outra questão, como se comportaram as pessoas durante a ditadura?
Claro que houve resistências, algumas heroicas, pessoas que lutaram contra a ditadura arriscando sua própria vida seja no campo das ações armadas, seja no campo da oposição democrática, tivemos inúmeras pessoas que lutaram contra a ditadura, porém uma boa parte da sociedade durante muito tempo ou durante todo o tempo se aclimatou, se dispôs bem com essa ditadura. Isso precisa ser estudado, precisamos nos questionar sobre isso e, em terceiro lugar, é uma coisa muito preocupante esse processo de negociação tão longo, que legados ele deixou para a nossa democracia?
Basta ver a última Constituição que tivemos, a que vige até o momento, a de 1988. Ao tempo em que ela garante liberdades indispensáveis, inclusive formula coisas muito interessantes e progressistas, inéditas na história do Brasil como, por exemplo, direitos sociais materializados no SUS, saúde pública gratuita e universal, liberdades civis, políticas muito claramente consagradas, mas, ao mesmo tempo, os legados da ditadura.
A tutela militar, o monopólio dos meios de comunicação, a hegemonia do capital financeiro, essas grandes empresas imobiliárias, da construção civil, filhos da ditadura que continuaram reinando na nossa República democrática, as grandes responsáveis pela corrupção desencadeada em todos os setores do Estado, esses empreiteiros que cresceram à sombra da ditadura que continuaram lucrando e exercendo as suas atividades na democracia, as polícias militares, que foram criadas muito antes da ditadura, mas que permaneceram depois dela, você tem um conjunto de legados que marcam muito profundamente a nossa sociedade que são legados da ditadura.
Ou seja, é importante refletir porque a ditadura sem instaurou quase sem luta, quase sem resistência, porque ela demorou tanto, como se comportavam as pessoas ao longo da ditadura e que legados ela deixou para nossa sociedade atual. Outro aspecto que nos faz evocar os tempos da ditadura são os riscos que a democracia vem correndo atualmente, não só no Brasil, mas em todo mundo.
É público e notório que o regime democrático enfrenta hoje uma crise de proporções consideráveis e agora, no contexto da pandemia, é muito preocupante o fato que inúmeros governos tenham assumido plenos poderes para tratar da pandemia, o que, em grande medida, se justifica pela urgência, pela emergência de um perigo maior, mas, no entanto, é preciso abrir bem os olhos porque os governos estão concentrando poderes de controlar a vida das pessoas, poderes muito grandes que haverá de serem retirados logo depois que a pandemia seja afastada.
Temos não só nos regimes autoritários a multiplicação destes poderes especiais ditatoriais, como é o caso da China, da Índia, da Hungria do Victor Orbán, mas também em outros países de tradição democrática estamos vendo o avanço do Estado no controle da sociedade e dos cidadãos em geral. É preciso abrir bem o olho para que isso não se torne comum depois que a pandemia passe. Tudo isso nos faz pensar em políticas que poderiam ser propostas nesse processo de pandemia para que, de alguma forma, a democracia seja fortalecida mesmo nas condições atuais.
No Brasil, vejo algumas medidas que seriam importantes. Por exemplo, a aprovação de um imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas. As restrições às grandes fortunas encontram-se no nosso texto constitucional. Por que não fazer uma lei enquanto durar a pandemia para as grandes fortunas pagarem 20% de imposto de solidariedade, como foi criado depois da 2ª Guerra Mundial em vários Estados europeus? Isso contribuiria muito para diminuir as desigualdades sociais que são uma das causas do enfraquecimento da democracia ultimamente.
No plano político, por que não aprovar, por exemplo, a devolução desse imposto que os parlamentares criaram na surdina, o chamado fundo estatal, mais de R$ 3 bilhões? Por que não doar esse fundo estatal ao sistema de saúde para que ele possa comprar respiradores? Por que não aprovar para controlar o comportamento insano do Bolsonaro o plebiscito revogatório? Muita gente está falando que ele deve renunciar, outros falam de novo em impeachment. O homem foi eleito pelo povo, por que não devolver ao povo o direito de estabelecer se ele tem condições ou não de permanecer à frente do governo?
O plebiscito revogatório é o único instrumento democrático para democraticamente o povo revogar o voto que fez em 2018. Pelo voto o homem foi eleito, pelo voto ele deve ser, se for o caso, derrubado. Penso que são medidas que poderiam, mesmo nesse momento de encobrimento das margens democráticas, sujeitos que todos estamos a essa legislação dura de confinamento, de restrição de movimentos, aprovar medidas que passam, no plano econômico e político, reforçar tendências democráticas, de modo que quando a gente saia da pandemia, tenhamos já dado, no seu interior, impulso para continuarmos nessa via reformando a política, a economia, de modo que a gente possa ter uma democracia mais sólida e mais fundamentada nas demandas da sociedade. Essas são as considerações que queria fazer a propósito dos 56 anos da ditadura.
* Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF)
Ouça a opinião de Daniel Aarão Reis: