Preencha os campos abaixo para submeter seu pedido de música:
A carne mais barata do mercado é a carne negra. O verso eternizado na voz de Elza Soares segue atual, apesar das iniciativas recentes de inserção, acesso à cidadania e da incessante luta dos movimentos afrodescendentes no Brasil. E a eleição de 2018 pode dificultar esse processo.
Para debater o tema, motivado pelo dia da Consciência Negra, o Faixa Livre convidou três historiadores: o babalaô Ivanir dos Santos, o coordenador nacional de políticas educacionais do Movimento Negro Unificado (MNU) Lucas Batal, além da pesquisadora de relações de gênero e relações raciais Wania Sant’anna.
A vitória de Jair Bolsonaro, aliás, com seu discurso preconceituoso em relação às minorias e inflado por uma sociedade que historicamente negligencia os negros, deu a tônica da discussão.
“O próximo governo não tem sinalizado empatia ou respeito a todas as conquistas da população negra nas ultimas três décadas. É muito emblemático se ter colocado na campanha a discordância em relação aos direitos das empregadas domésticas, que são na sua esmagadora maioria de mulheres negras, e às cotas raciais nas universidades. Vimos nos últimos 10 anos uma ampliação da participação da juventude negra, transformando o rosto das universidades”, disse Wania.
“Se você não entender contra quem luta, pode reforçar as estruturas de dominação” – Ivanir dos Santos
De acordo com dados da pesquisa de perfil socioeconômico e cultural de estudantes de graduação da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), 446 mil afrodescentes se formaram em 2014, o que representa 47,6% do total de graduados naquele ano.
O ingresso dos negros às universidades através do sistema de cotas representa, para Lucas, a tentativa de se corrigir um fato que os livros de história registram, mas que a sociedade brasileira não encampou ao longo das décadas.
“É uma política de compensação e de falsa abolição, um processo de libertação dos escravos que não pensa políticas publicas para a maioria da população. A juventude, ao ter acesso à universidade, tem acesso à sua própria historia. A história dos negros, tradicionalmente muito oral, é perdida com facilidade, e é nas universidades que eles têm acesso a isso”, avaliou.
Em suas entrevistas coletivas, o futuro presidente costuma estar acompanhado do deputado eleito Hélio Fernandes, o Hélio Bolsonaro, negro e que teve votação recorde no Rio de Janeiro para a Câmara Federal, alavancado pela alcunha que o referencia ao ex-capitão do Exército. Ivanir observa um simbolismo nessas manifestações.
“Toda vez que ele aparece, surge um negro ao lado. O parlamentar mais votado e ninguém sabe o que pensa, parece uma figura decorativa. É sinal de que Bolsonaro tem preocupação com a questão racial, está temeroso com o que pode vir por aí”, ressaltou o babalaô.
“O Estado só chega nas periferias e favelas através do seu braço armado” – Lucas Batal
O componente histórico também permeou o debate. A pesquisadora exemplificou a ausência das instituições nacionais mesmo após o ato que pôs fim à escravidão no século XIX.
“O decreto 528, de 28 de junho de 1890, que regulariza a entrada de imigrantes, dá todas as concessões aos fazendeiros para que tragam mão de obra estrangeira. Enquanto a Lei Áurea tem 14 palavras, o decreto tem 42 parágrafos. O Estado brasileiro operou efetivamente para impedir a inserção plena dos afrodescendentes nos setores da economia à época”, rememorou.
Lucas lembrou que a participação dos descendentes africanos no processo eleitoral brasileiro se deu, de fato, a partir do fim da ditadura militar, com a retomada democrática no país:
“Temos de entender que a única instituição que permanece da Colônia e não é herdada de Portugal é a escravidão. Só a partir da Constituição de 1988 que a maior parte da população negra pôde votar porque foi liberado o voto aos analfabetos”.
Apenas 10% dos livros brasileiros publicados entre 1965 e 2014 foram escritos por negros, segundo estudo da UnB. Entre as produções audiovisuais, 31% delas contam com a presença de atores afrodescendentes, majoritariamente com personagens associados a pobres, sejam escravos ou em núcleos de favelas.
A desigualdade fica clara também no mercado de trabalho. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a taxa de desemprego entre os negros no país é de 16%, enquanto 10,5% dos brancos buscam recolocação profissional.
“Devemos apontar à sociedade brasileira que somos um grupo organizado que tem resultados” – Wania Sant’Anna
A defesa das pautas do movimento negro é recente inclusive para os militantes do campo progressista, segundo Ivanir, que objetivavam outras conquistas sociais.
“Se há um movimento social que sempre remou contra a maré foi o nosso, seja na luta pela abolição da escravatura, após a República, durante a ditadura. Naquele período, nem a esquerda tinha sensibilidade para a questão racial, achava que a questão de classe era mais importante”, comentou.
Entre os dias 6 e 9 de dezembro, acontece em Goiânia o encontro Nacional de Mulheres Negras, que celebra 30 anos em 2018. Uma campanha de financiamento coletivo foi lançada para apoiar a realização do evento. As doações, que variam de R$ 20 a R$ 1000, podem ser feitas até o dia 2 pelo site.
Ouça o debate na íntegra através do link abaixo:
Debate em 23.11.2018