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O aprofundamento das experiências neoliberais em países da América Latina tem levado a um processo de comoção social e redirecionamento político-ideológico. A eleição de partidos com viés progressista, como aconteceu no México e se encaminha na Argentina, bem como a explosão de protestos violentos no Equador e, mais recentemente, no Chile, apontam para a tragédia que são as políticas de valorização do capital em detrimento aos interesses da população mais pobre.
No Brasil, a gestão de Jair Bolsonaro apresenta certas semelhanças às medidas tomadas pelos chilenos, como a precarização da legislação trabalhista, a desvalorização do salário mínimo, a entrega das riquezas nacionais aos investidores estrangeiros e o desmonte da Previdência Social. A pergunta que fica é: poderemos chegar a uma situação de revolta popular e perda da capacidade econômica semelhante à do país sul-americano?
Para responder a esse questionamento, o Faixa Livre convidou o especialista em política internacional e professor de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Franklin Trein, o professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) Bernardo Kocher e o também docente na mesma instituição, mas de Relações Internacionais, Victor Klagsbrunn.
No caso do país presidido por Sebastián Piñera, as manifestações sangrentas, que foram iniciadas há uma semana, já deixaram 18 mortos e centenas de feridos. O rastro de destruição na capital Santiago e em cidades satélites atinge lojas, prédios públicos e estações do metrô. Aliás, o aumento das tarifas metroviárias foi o estopim para o levante, iniciado pelos estudantes.
Dois dias atrás, o mandatário chileno se desculpou no Palácio de La Moneda pela crise provocada e anunciou um pacote de medidas para tentar conter as manifestações, como a garantia de uma renda mínima à população, a criação de mecanismos de estabilização do preço da energia, um seguro para a compra de remédios e a elevação das aposentadorias.
A atual situação no Chile remete, na opinião do especialista da UFRJ, a um período que já ultrapassa as três décadas, degradando as condições de vida da maioria do povo e tensionando as relações sociais no país.
“A interferência ocorrida no processo político e no desenvolvimento econômico, mesmo depois do fim da ditadura do [general Augusto] Pinochet, continuou criando uma situação cada vez mais desesperadora para a sociedade chilena porque o desmonte foi de tal ordem que hoje eles não têm mais saúde, educação, Previdência. Há uma desordem completa na estrutura social chilena, um empobrecimento brutal e essa rebelião era algo anunciado”, observou, citando a necessidade de uma iniciativa ainda mais incisiva.
“A amarração da economia chilena hoje é de tal ordem que não há muito como sair dessa situação, a não ser que se faça uma efetiva reforma que, pelas suas dimensões, não será uma reforma, mas uma revolução. Os dois governos, do Piñera e da [Michelle] Bachelet aparentemente contribuíram para esse estado de insatisfação porque fizeram promessas que não poderiam cumprir”, continuou.
Esse tipo de levante popular que acontece nos países vizinhos não se resume à América. Espanha, França e Hong Kong passam por momentos semelhantes, com uma importante parcela da sociedade nas ruas. O professor de Relações Internacionais da UFF destacou outras nações que observam uma situação de crise.
“Esse tipo de revolta ganhou até um título da revista The Economist décadas atrás, que é ‘As revoltas do FMI’. Toda vez que se tenta implantar a ferro e fogo uma mudança radical de retirada de subsídios populares, aumento de preços de gasolina como vimos agora no Equador, esse tipo de revolta estoura de repente. Me lembro no Egito só porque aumentaram um pouco o subsídio do pão, houve uma revolta gigantesca”, disse.
Victor destacou também que as mudanças promovidas pelo regime de Pinochet, no Chile, foram semelhantes às patrocinadas pela ditadura militar de 1964, com uma política dita neoliberal, o fim dos subsídios, a diminuição do Estado e um suposto combate à corrupção, história que ganha ares contemporâneos com Jair Bolsonaro.
“É interessante que, no Brasil, as coisas se repetem de uma maneira que o pessoal esquece completamente. Se o Collor foi eleito em uma campanha contra a corrupção, vem agora um novo tenente, que foi promovido a capitão, com uma política também contra a corrupção, quando mesmo a própria família está atolada até o joelho, talvez mais, nesse mesmo tipo de coisa”, denunciou.
Repetir o panorama chileno por aqui, aliás, é uma hipótese que se coloca cada vez mais próxima da realidade. A proposta inicial do governo para a revisão das regras da aposentadoria imitava o modelo implantado há anos por lá, com o sistema de capitalização. Vale lembrar que a perda de renda das aposentadorias levou milhares de idosos ao suicídio no Chile.
O ministro da Economia Paulo Guedes, principal entusiasta das poupanças individuais na Previdência Social, chegou a chamar o país andino de “Suíça da América Latina”. Resta saber se o ‘Posto Ipiranga’ do político do PSL mantém sua avaliação após a tragédia social evidenciada pelas manifestações. Para Kocher, as medidas tomadas pelo Palácio do Planalto, apesar de escatológicas, em alguns casos, vão acumulando êxitos.
“Esse teatro do grupo que tomou poder é patético, ridículo, mas eles estão tendo vitórias. A [reforma da] Previdência não é brincadeira, foi um golpe de mão muito profundo sobre a classe trabalhadora e para reverter isso demora gerações. Estão tentando isso desde que entrei no mercado de trabalho, há 40 anos, e conseguiram fazer”, destacou.
Uma comparação entre a situação brasileira e a chilena não é vista como ideal por Franklin. Ambos os países têm peculiaridades, como a arraigada influência de empresas estrangeiras no país sul-americano, com a privatização de quase todos os serviços públicos.
“Acho que a situação brasileira é bem mais complexa não somente do ponto de vista da nossa história política, mas da nossa composição, da nossa estrutura econômica. O Chile tem determinadas características muito fáceis de serem identificadas, hoje se transformou em uma maquiadora dos capitais internacionais. Se implantaram e fizeram do Chile uma plataforma para sua reprodução, e a população chilena foi submetida a esse processo de espoliação, de exploração sem limites, onde lhe foram retiradas todas as conquistas sociais que o curto período do socialismo de Allende havia iniciado e não conseguiu sequer consolidar”, comentou.
A possibilidade de termos um levante semelhante ao do Chile está distante para o professor de História Contemporânea da UFF. Kocher exemplificou sua descrença com um fato ocorrido no último processo eleitoral no país.
“Estamos esperando uma reação, mas ela não veio nas eleições para se atentar ao fato de que estava havendo uma fraude eleitoral. Então esperar agora nesse momento que acabou de haver a eleição, os efeitos desse processo ainda não se fizeram totalmente sentir, pelo menos aos que têm vocalização. Os mais pobres não têm voz. Os setores médios urbanos que estão agora digerindo lentamente essa situação, então vai levar certo tempo. Talvez o calendário eleitoral ajude a acelerar”, pontuou.
Ouça o debate na íntegra:
Debate em 25.10.2019