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Se o ano de 2019 provocou um caos político no Brasil com a chegada de um projeto de extrema-direita ao poder, no cenário internacional a situação não foi muito diferente. Conflitos sociais em países da América do Sul e da Europa, o aumento da tensão entre China e Estados Unidos pelo predomínio geopolítico global e o Oriente Médio refém da cobiça imperialista pelas reservas de petróleo, além das disputas religiosas, deram a tônica.
Como pano de fundo dessa hostilidade está uma mudança no horizonte ideológico de algumas nações, em especial no nosso continente. Progressistas e liberais buscam espaço diante da fragilização dos Estados nacionais e da cobiça externa do capital, que derruba governos e promove transtornos para as sociedades.
A discussão das questões internacionais se deu nos debates especiais de fim de ano do programa Faixa Livre com as participações do professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF) Bernardo Kocher, do docente de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da UFF Williams Gonçalves e do presidente do Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) e professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Nildo Ouriques.
O movimento de alteração do predomínio no planeta em favor do país asiático, previsto pelos analistas desde o final dos anos 1990, tem motivado reações da gestão de Donald Trump, que ainda se favorece do poderio bélico para manter suas zonas de influência.
“A questão da crise da hegemonia americana é verdadeira, mas mal contada ainda. Isso porque trata-se de pensar a crise americana como tendo sido o que foi a crise britânica ou de outras hegemonias que historicamente existiam nas relações internacionais. Falo porque os Estados Unidos estão realmente perdendo o poder de uma forma mais relativa que absoluta porque o poder das armas americanas é crucial, eles têm mais armas que todos os outros países juntos ou algo próximo a isso. Donald Trump está reagindo”, observou Kocher.
A atuação do presidente norte-americano no campo internacional para conter o avanço dos asiáticos, apesar de todas as polêmicas em torno de seu temperamento e de declarações ofensivas, tem sido eficaz no diagnóstico do professor da UFF.
“A China é uma potência em ascensão vertiginosa, principalmente no campo econômico, mas também no militar, e os Estados Unidos já têm uma presença na África e na Europa, estão acionando todos os mecanismos de uma forma menos barulhenta do que foi na era [do ex-presidente Ronald] Reagan, por exemplo, e obtendo os resultados. O Donald Trump é uma pessoa visualmente perturbada, desagradável, mas está executando um programa coerente. Ele não é bem visto nem dentro do Partido Republicano, mas está conseguindo bons resultados e a possibilidade da reeleição dele é uma coisa real. Temos de olhar isso como um projeto de longa duração”, analisou.
Os efeitos maléficos da conjuntura econômica global, algo que se deu na última década e afetou todo o mundo, ainda são sentidos, segundo Williams. Para ele, a desaprovação do líder estadunidense ao processo de abertura dos mercados é um sinal. tal qual o Brexit aprovado no Reino Unido.
“Na base disso tudo há uma crise do capitalismo globalizador, que eclodiu em 2008 e até agora não foi solucionada. Tanto Donald Trump, como os ingleses, com sua retirada da União Europeia, são manifestações dessa crise. O Trump se elegeu criticando duramente a globalização, as instituições multilaterais, responsabilizando-as pela situação de desemprego e desespero de alguns setores da sociedade norte-americana, e aquele que considera o principal vencedor da globalização é a China”, disse.
“O socialismo com características chinesas começou a crescer mais, a China aceitou o desafio da globalização. A partir de meados dos anos 1990, a China deixou de ser autossuficiente em petróleo e passou, portanto, a buscar mercados cativos para o fornecimento e, por outro lado, também teve participação mais intensa no comércio internacional no início dos anos 2000. Em 2001, ingressou na Organização Mundial do Comércio mediante algumas promessas para que sua economia fosse reconhecida como economia de mercado e a China se expandiu”, rememorou o docente da Uerj.
A teorização em torno do capitalismo foi utilizada por Nildo Ouriques para explicar as posturas protecionistas, em determinados momentos, e liberalizantes, em outros, adotadas pelos Estados Unidos, como a elevação das tarifas para importação de produtos de alguns países e a tentativa de criar barreiras para o livre comércio.
No entanto, este modelo de gestão não é bem visto pelas grandes potências nos países periféricos, sendo este discurso ratificado pelas estruturas de poder que pontificam as nações subalternas ao capital hegemônico.
“O sistema capitalista funciona à base de uma lei do valor, tem de competir em escala global. Daí o papel preponderante da China, mas também das multinacionais estadunidenses dentro da China e, de outro lado, os Estados que vão competir para manter a hegemonia sistêmica. É sempre assim. Então essa visão globalista ou nacionalista nos Estados Unidos são manifestações fenomênicas dessa situação sistêmica, há uma concorrência entre Estados e nações que funciona com o centro e uma periferia”, analisou.
“Eu não tiraria o Trump, por exemplo, como um ponto fora da curva. Ele faz parte desse movimento de sístole e diástole da economia mundial que implica em horas expandir e em horas fechar. O nacionalismo não é uma anomalia do sistema. Acontece que na periferia capitalista o nacionalismo é rejeitado, e ele é uma força revolucionária que os homens da política não praticam. Veja a burguesia brasileira, a mexicana ou a centro-americana, são burguesias não só canalhas, entreguistas, mas que não têm a menor capacidade de pensar a chamada disputa pela hegemonia”, prosseguiu o presidente do IELA.
O acirramento da disputa pela supremacia mundial promoveu uma série de episódios de enfrentamento tanto no campo político, como no econômico, e a América do Sul foi um dos territórios de influência no embate entre estadunidenses e chineses.
Manifestações populares no Chile, na Bolívia, no Equador e na Venezuela colocaram em cheque governos por motivos distintos. O golpe que destitui Evo Morales é um dos exemplos desse movimento de diferentes forças. Já na Argentina, o liberal Maurício Macri viu seus planos de reeleição ruírem após a crise econômica atingir em cheio o país, motivando uma nova ascensão do Kirchnerismo representado pelo eleito Alberto Fernández.
No Brasil, o alinhamento automático de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos deu o tom no primeiro ano de mandato do ex-capitão do Exército, mas as críticas aos chineses, comuns no período eleitoral por razões ideológicas, foram substituídas pelo pragmatismo, em uma tentativa de ampliação do comércio entre os dois países.
A clara falência do projeto rentista no nosso continente se opõe à dificuldade de integração entre as nações latino-americanas, seja a partir do bolivarianismo venezuelano ou pelo lulismo. O embate às políticas destrutivas patrocinadas pelo imperialismo no país é considerado tarefa difícil para Williams.
“A capacidade de resistência a essas políticas neoliberais diz respeito à formação histórica e sou pessimista em relação ao Brasil. Esses países [da América Latina] têm a inserção das camadas populares na política. A percepção, o nível cultural é muito diferente do Brasil. Veja que essas coisas que estão acontecendo ao redor, a rebelião no Chile, a deposição do Evo Morales na Bolívia, isso tudo passa despercebido no Brasil”, disse.
“Temos um déficit cultural imenso e isso explica muita coisa do que está acontecendo. Um país que tem uma população semi-alfabetizada como nós e que, ao mesmo tempo, é uma das populações que mais usa o celular, explica muita coisa. Uma parte considerável da população é completamente vulnerável às fake news, isso significa uma despolitização muito grande. Os direitos trabalhistas estão sendo perdidos e ninguém se dá conta”, finalizou o docente.
Ouça o debate na íntegra: