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O clichê ‘a saúde no Brasil está na UTI’, que remonta à ideia de gravidade do quadro, já deixou de refletir o estado do sistema público no país. A imposição de um teto nos gastos para os próximos 19 anos combinada a um nível de empobrecimento da população poucas vezes visto conformam um panorama pré-falimentar ao SUS.
A análise e as alternativas para reversão deste cenário foram discutidas em mais um debate especial de fim de ano no programa Faixa Livre, com as participações do presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam) Jorge Darze, do presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) Sylvio Provenzano e do professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jorge Esteves.
Às vésperas de completar dois anos, a Emenda Constitucional 95, conhecida como ‘PEC da morte’, determinou o congelamento dos investimentos públicos durante duas décadas para saúde e educação e mostra seus efeitos na superlotação das emergências dos hospitais país afora.
“Uma das principais complicações da crise social é o adoecimento das pessoas, os hospitais passam ser o esgoto da sociedade, é para lá que vão todos os casos fruto do desemprego, da miséria. A reforma do Estado tem sido altamente predatória e criminosa. É impossível conciliar uma emenda que congela gastos quando se tem a população em crescimento, uma crise social que se agrava, ela precisa ser revista. A saúde não pode ser tratada dessa forma”, alertou Jorge Darze.
Um estudo produzido pela organização Oxfam em parceria com o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o Centro para os Direitos Econômicos e Sociais (CESR) à época da aprovação da proposta, e entregue aos parlamentares, apontava que a emenda ‘aprofundaria as desigualdades na sociedade brasileira, com impactos desproporcionais, sobretudo para aqueles já em situação de vulnerabilidade’.
Além disso, a Relatoria Especial das Nações Unidas sobre a Extrema Pobreza e Direitos Humanos classificou a alteração constitucional como ‘radical, desprovida de nuance e compaixão.
“Foi uma medida adotada para resolver um problema fiscal, mas para alimentar um crime que se repete nesse país há muitos anos. Praticamente metade do orçamento da União é destinado para pagar juros da dívida pública e 3% para saúde e educação. A opção política está dada”, disse o presidente da Fenam.
“Médico não estudou seis anos e fez pós-graduação por quatro para assinar atestados de óbito de pessoas que perderam a oportunidade de tratamento” – Jorge Darze
Um levantamento recente divulgado pelo Conselho Federal de Medicina apresentou os gastos com saúde no Brasil. Entre 2008 e 2017, os investimentos tiveram um aumento médio de 3% ao ano, chegando à casa dos R$ 268 bilhões. Nesse mesmo período, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), que mede a inflação oficial no país, teve variação positiva de 80%.
Já a correção da despesa per capita em ações e serviços públicos de saúde foi de 26%, o que resulta em uma defasagem média de 42%. Segundo a análise, se os valores fossem corrigidos a partir de 2008, o gasto por pessoa no SUS passaria de R$ 1272 para R$ 1800 anualmente.
Caso os recursos acompanhassem a alta da inflação, só no ano passado o investimento total teria um aporte de R$ 110 bilhões, o que representa o triplo do orçamento aplicado por União, estados e municípios.
“Temos problemas tanto na saúde pública, quanto na saúde privada. Salta aos olhos os problemas do SUS porque é onde a população mais busca atendimento. Pela crise econômica, muitos perderam seus planos de saúde e tiveram de correr para os hospitais públicos, que já estavam sobrecarregados”, lembrou Provenzano.
A transferência de recursos do Estado na saúde para os empresários é outra crítica recorrente. Em algumas regiões do país, a administração de Unidades de Pronto Atendimento (UPA’s) e hospitais foi repassada a Organizações Sociais, as OS’s, uma espécie de terceirização do serviço.
“Não sabemos até onde as OS’s têm compromisso com a qualidade da assistência, quais os critérios para os médicos serem contratados. No Rio de Janeiro, a questão ultimamente está se agravando. As próprias Organizações Sociais já estão terceirizando o atendimento, o que conforma uma quarteirização”, ressaltou o presidente do Cremerj.
O prefeito Marcelo Crivella anunciou no final de outubro um plano de reestruturação da Atenção Básica, com o corte de 239 equipes, sendo 184 de saúde da família e 55 de saúde bucal. Isso representa a demissão de 1400 trabalhadores.
O professor Jorge Esteves lembrou que os profissionais da saúde primária na capital fluminense estão em greve há três meses reivindicando melhores condições de trabalho. A prefeitura utiliza o argumento de que não tem recursos para prover sequer os insumos das unidades.
“O Crivella é um mau gestor. Analisando os últimos oito anos, o Rio de Janeiro tem um aumento nos recursos da saúde entre R$ 500 e 700 milhões. Quando ele assumiu em 2017, com o orçamento previsto anteriormente pelo Eduardo Paes, disse no meio do ano que não tinha dinheiro para pagar seus funcionários e tentou fechar unidades. Em 2018, quando o orçamento foi aprovado por ele, falou novamente que não tinha recursos e culpou as OS’s pela má gestão”, comentou.
“Se há uma categoria profissional nos últimos 20 anos enxovalhada por todos os governos é a dos médicos” – Sylvio Provenzano
A alegação do prefeito foi contestada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro. O órgão comprovou que a receita do município este ano foi 9% superior em relação ao exercício anterior.
“O governo não dá uma boa justificativa e quando precisa encontrar um culpado, usa as OS’s. De fato as Organizações Sociais são um problema para gerir um bom SUS, com profissionais estáveis, com carreira pública, mas desviar o dinheiro para outras pastas e dizer que elas são o problema é fugir da questão de fato” avaliou Esteves.
A baixa remuneração dos médicos foi destacada por Jorge Darze como um dos empecilhos para a melhoria dos serviços, especialmente pelo alto custo na formação dos profissionais: “O médico na Secretaria Estadual de Saúde ganha R$ 1500 há mais de 20 anos, por isso o sistema está se degradando continuamente”.
Uma das soluções possíveis levantadas pelos debatedores é a criação de uma carreira típica de Estado para os profissionais de saúde, seguindo modelos que já existem na administração pública.
“No Cremerj, defendemos a implantação de um plano de carreira para o médico. Isso permitiria uma seleção melhor dos profissionais, bem como asseguraria estabilidade ao profissional caso fosse indicado aos rincões mais distantes, que foi o mote que levou ao ‘Mais médicos’ em 2013”, pontuou Provenzano.
Boa parte dos trabalhadores da área de saúde resiste à ideia das carreiras típicas pela necessidade de dedicação exclusiva, o que os impediria de complementar a renda atuando em consultórios particulares.
“Bolsonaro hoje não só reforça um discurso liberal, como atribui à equipe econômica as decisões. São os Ipiranguetes” – Jorge Esteves
“A profissão médica desde a antiguidade é liberal. Dentro do conceito de liberalismo, a iniciativa privada está no bojo. Nada contra o colega que cursa medicina e tenta fazer da atuação privada seu meio de vida. Tudo depende de um plano de carreira que assegure ao médico recursos necessários para sobreviver”, ressaltou o presidente do Conselho de Medicina do Rio.
“O médico é um trabalhador como outro qualquer que trabalha e quer ser bem remunerado, é uma reivindicação justa do sistema que vivemos. Não é crime pleitear uma boa remuneração, fazendo jus à sua competência profissional, condizente com o que fez na sua capacitação”, complementou Darze.
A realização de concursos públicos na área da saúde foi outra iniciativa demandada. “É importante para saber se essas pessoas que vão atender a população estão capacitadas. Não pode haver eficiência se não houver aferição de qualidade daqueles que vão prestar o serviço”, destacou Esteves.
As expectativas para o novo governo que assume a presidência em janeiro não são das melhores. A indefinição quanto aos rumos das políticas públicas para a saúde preocupam o professor da UFRJ. Para ele, o nome indicado por Jair Bolsonaro para assumir o Ministério terá dificuldades que vão além da sua pasta.
“A situação política não é favorável. Você não sabe qual é o programa do Bolsonaro para a saúde, mas tem uma equipe econômica que fala em corte de gastos, em enxugar a máquina pública. [Luiz Henrique] Mandetta tem um desafio que é discutir temas de fortalecimento do sistema público com orçamento limitado”, encerrou.
Ouça o debate na íntegra:
Debate em 14.12.2018