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O Brasil lembrou ontem os 3 anos das execuções da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, em uma rua do bairro do Estácio, região central do Rio de Janeiro. Naquele 14 de março de 2018, o país estava na tensão pré-eleições presidenciais e o estado vivia uma intervenção federal na segurança pública, com as Forças Armadas comandando as ações.
Nesses 3 anos, ainda que dois supostos autores tenham sido presos, os ex-PM’s Élcio Queiroz e Ronnie Lessa, ligados ao Escritório do crime, um grupo armado de assassinatos por encomenda, muitas perguntas seguem sem resposta. A principal delas é: quem mandou matar Marielle e Anderson? O Faixa Livre fará hoje uma edição especial para tratar desse tema, com três entrevistas muito bem produzidas pela jornalista Celeste Cintra, com o vereador Tarcísio Motta, companheiro de Câmara e de partido de Marielle, o delegado de Polícia Civil Orlando Zaccone e o jornalista Chico Otavio, que escreveu um livro ao lado da também jornalista Vera Araújo abordando o tema.
Eu também não posso deixar de citar o pedido de afastamento ontem do ministro da Saúde general Eduardo Pazuello, noticiado pelo jornal O Globo. O militar alegou problemas de saúde para deixar a Pasta, demissão que deve ser anunciada nos próximos dias, isso justamente no período de maior pressão da pandemia de Covid-19 no país e com parlamentares do Centrão exigindo a saída de Pazuello do cargo. Os mais cotados para a vaga são os médicos cardiologistas Ludhmila Hajjar, professora associada da Universidade de São Paulo (USP), e Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia.
Fato é que o militar tem até agora sob sua responsabilidade quase 265 mil mortes pelo novo coronavírus em 10 meses de trabalho. Em 15 de maio do ano passado, o Brasil registrava 14.817 óbitos pela doença, algo muito distante dos quase 280 mil que temos hoje, nos colocando como o país com o maior número de óbitos na média diária em todo o mundo neste momento. Pazuello representa a política genocida defendida por Bolsonaro desde o início da pandemia e a história vai cobrar isso dos dois. Esperamos que o próximo ministro dê uma guinada neste cenário de tragédia e consiga vacinas o mais rápido possível para imunizar a nossa população. Eu também gostaria de ler neste espaço editorial o artigo da jornalista Dorrit Harazim, publicado ontem no jornal O Globo, onde ela fala sobre este segundo ano de pandemia no Brasil, iniciado na última semana. O título do texto é “Brasil, ano 2”:
“Lançado em 1976, ano do bicentenário da independência dos Estados Unidos, o filme-sátira “Rede de intrigas”, de Sidney Lumet, contava a história de um âncora de TV demitido porque sua audiência despencara. Interpretado por Peter Finch (Oscar póstumo de melhor ator), o personagem decide comunicar ao vivo sua saída e avisa que se suicidará na semana seguinte com o programa no ar. A audiência dá um salto, e a emissora decide voltar atrás. A partir daí, o âncora passa a encarnar um oráculo insano que só diz verdades. Numa cena antológica, ele convoca os espectadores a se insurgirem contra a lógica do mercado e da dominação do capitalismo: “Quero que todo mundo levante de sua poltrona agora, vá até a janela, abra-a, ponha a cabeça pra fora e grite a plenos pulmões: ‘Chega! Não aguento mais! Estou explodindo de raiva!’.”
O Brasil de 2021 tem um quê de “Rede de intrigas”. Temos o cidadão que não aguenta mais, que gostaria de explodir sua raiva contra o abandono a que foi condenado. Ele só não explode nas janelas e pelas ruas do país por medo de morrer de Covid-19. A diferença é que, no lugar de um maluco de ficção que no filme apontava para a realidade, temos um presidente da República insano, porém real, descontrolado e amoral, a nos enredar em falsidades.
Ao longo do interminável ano de 2020, o país se acomodou, encolhido no que pesquisas sobre saúde mental definem como “pensamento mágico” — apostou-se na vã esperança de um reencontro com a vida em 2021. No fundo era um mero atalho mental para sair da era da incerteza pandêmica, escapulir do estado de ansiedade e do silêncio coletivo. Apostamos, muitas vezes às escondidas de nós mesmos, que, no decorrer do ano novo, poderíamos sair da toca e procurar nos reconhecer nas pessoas que algum dia fomos. Aniversários cancelados seriam comemorados duas vezes, o Natal adiado reuniria famílias e amigos na Páscoa de abril, e o resto do calendário de 2021 ficaria lotado de abraços apertados.
No dia a dia, um pouco de pensar mágico não faz mal a ninguém. Sua utilidade se assemelha à das superstições inofensivas. Quando o problema é imenso, e sua solução parece fora de alcance, o recurso apenas aumenta a sensação de desamparo. É onde o Brasil se encontra neste primeiro aniversário da primeira morte por Covid-19, registrada em 12 de março de 2020. O choque, o horror inicial, cedeu primeiro à inércia, depois à fadiga, mas finalmente adquire contornos de consciência. Agora é torcer para que se transforme em cobrança. É como se só agora estivéssemos despertando de verdade para 2021: com a cara num muro pandêmico de 275 mil mortos, falta de vacinas e o colapso do sistema hospitalar.
Também governadores, prefeitos e o Congresso, ora em separado, ora em ações emergenciais conjuntas, acordaram para o galope da devastação humana nacional. Ainda assim, de modo atabalhoado, indesculpavelmente a reboque da mortandade anunciada, ainda sem linha mestra clara. Basta listar algumas decisões tomadas num mesmo dia — a quinta-feira passada — em nível estadual e municipal para desnortear qualquer bípede. No Paraná, estado com a maior fila por leitos hospitalares (500) do país, o governador Ratinho Jr. reabriu o comércio e anunciou o fim do lockdown de 12 dias, apesar de constatar que o Brasil vive “a maior guerra de saúde pública dos últimos 100 anos”. Em Curitiba, é o prefeito Rafael Greca que alerta para a eventual necessidade futura de um lockdown. “Cumpro meu dever de prefeito para anunciar que estamos chegando ao nosso limite”, disse ele. Seu dever de prefeito não seria agir ANTES que o colapso ocorra? O governador de São Paulo, João Doria, fez discurso semelhante ao suspender normas anunciadas dias antes e decretar “fase emergencial”: “Pessoal, infelizmente chegamos ao momento mais crítico da pandemia”. Ou seja, deixou chegar a emergência crítica, para só então fechar cultos em igrejas e estádios para jogos.
No Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes desfolhava de forma errática a margarida das vacinas : uma hora tem o imunizante, na hora seguinte não tem. Resta ao grupo da faixa etária que se apruma para estender o braço voltar para casa sem saber do amanhã. Paes também afrouxou medidas tomadas na semana anterior — liberou o comércio na praia, academias de ginástica, cultos, ambulantes, barraqueiros, entre outros —, não dando tempo para que se estude a eficácia de medida alguma. É sabido que, para um lockdown ter algum impacto na curva de contágio e de óbitos por Covid-19, e poder ser analisado em detalhes, ele deve ter duração de ao menos 15 dias. A medida exige uma serenidade difícil de encontrar nas diversas esferas do poder nacional.
O mais esquizofrênico e deletério, sem dúvida, continua a ser o capitão do Palácio da Alvorada, que confunde a medida sanitária do toque de recolher, adotada pelo governador do Distrito Federal para reduzir a disseminação do vírus, com estado de sítio, instrumento excepcional pelo qual o presidente da Republica suspende por determinado período a atuação dos poderes Legislativo e Judiciário.
“Por vezes, morremos muito antes de sermos enterrados”, escreveu o francês Romain Gary em seu romance “Além deste limite, seu bilhete não vale mais”. O Brasil, neste ano 2 da pandemia planetária, parece decidido a não morrer tão antes do inevitável. A sociedade civil se organiza, a iniciativa privada se mexe, um reordenamento nas esferas estadual e municipal brota como opção B ao inexistente comando federal. Mas, para sobrevivermos, urge deixar Jair Bolsonaro e sua sombria parentela falando sozinhos”.
Ouça o comentário de Anderson Gomes: