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Editorial – 23.06.2020

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Como era de se esperar, a família Bolsonaro tenta se afastar daqueles personagens que, de alguma forma, são radioativos para o governo neste episódio da prisão do ex-assessor de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Fabrício Queiroz. O advogado Fred Wassef, que abrigava esta figura chave para elucidar uma série de malfeitos do presidente e seus filhos, foi afastado da defesa do senador no escândalo das rachadinhas. Para o seu lugar, foi escolhido Rodrigo Roca, que defendeu o ex-governador Sérgio Cabral e o levou a aceitar um acordo de delação premiada. Veremos se a estratégia vai funcionar. Fato é que o ex-capitão do Exército e seus familiares estão em uma difícil situação.

 

Outro que atravessa um momento complicado é o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. Ontem, o então secretário de Saúde Fernando Ferry anunciou sua saída do cargo. É o segundo titular da pasta que deixa o governo em pouco mais de um mês, já que Ferry chegou para substituir Edmar Santos, desgastado e suspeito de ter participado do escândalo de corrupção na construção dos hospitais de campanha no estado.

 

O demissionário Ferry teria alegado para o pedido de demissão a pressão que vinha sofrendo para continuar pagando contratos suspeitos. O Governo do Rio já nomeou o coronel do Corpo de Bombeiros Alex da Silva Bousquet, que é médico do Grupamento de Socorro de Emergência e trabalhou no Instituto de Assistência aos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (Iaserj).

 

Agora eu gostaria de passar à leitura de dois artigos interessantes que tratam da nossa conjuntura política e foram publicados no último final de semana, ambos pelo jornal O Globo. O primeiro deles é do psicanalista Paulo Sternick, e tem o título “Há limite para a maldade de Bolsonaro?”. Diz o texto:

 

Traços de arrogância, estupidez e prepotência do presidente pressagiam a iminência de um desastre político. Eles causam na sociedade tensão, susto e medo crescentes. E não sem razão, diante de suas reações desafiadoras que desacatam o bom senso e a ordem constitucional. Torna-se nebuloso distinguir entre o que é ameaça e intimidação daquilo que realmente é capaz de cometer. Opera como se pudesse manter a democracia na condição de refém, tendo supostamente consigo as Forças Armadas. Ou, acuado, blefa para acuar seus oponentes, já que não consegue, simplesmente, dialogar e fazer acordos com demais Poderes.

 

A dúvida que paira sobre a maioria do país é qual seria o limite da maldade de Jair Bolsonaro. Qual o limite dessa maldade — de quem flerta com a morte, seja por irresponsabilidade com a pandemia, elogios à tortura e fuzilamento, ou insinuações de executar atos discricionários? Afinal, todos morremos, e daí? Alguém já nos lembrou — será Tzvetan Todorov? — do efeito tóxico e catastrófico que resulta da mistura da política com o mal. Como se chama mesmo aquele Gabinete? A história humana é tragicamente pródiga em exemplos que não deixaram dúvida a Sigmund Freud sobre existência da pulsão de morte — item de fábrica da natureza humana. Sua expressão no campo social e político foi inventariada por Alan Wolfe, em “A maldade política”.

 

Porém, a capacidade de resistência da dignidade humana revela a luta civilizatória — e da pulsão de vida. Na atualidade, se expressa no movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos. No Brasil, nas frentes democráticas que se unem contra ameaça selvagem à nossa ordem constitucional. O ataque noturno, coarctado com fogos de artifício, contra o STF, cometido por radicais bolsonaristas, não foi apenas um tiro no pé. Mas um ato falho — ou ato perfeito, como diria Lacan —, ao produzir bonitas fotos iluminadas, como se para lembrar do prédio que hoje simboliza a resistência e a garantia da ordem constitucional ameaçada pelos baixos impulsos que se originam com aquiescência do Planalto.

 

Além de colocar em perigo o pacto democrático, que ataca sem trégua, Bolsonaro está rompendo o pacto da racionalidade e o da sanidade. Cada vez mais o país vive um pesadelo e teme que a ameaça se torne um ato. Porém, nem todos percebem que já estamos sofrendo um estado de exceção: o decreto é imaginário e os efeitos, subjetivos. Como todo populista de extrema direita, ele já está em nossa casa — como diria Antonio Scurati: nem precisamos esperar que suprima as instituições democráticas. Ele já as deteriora por dentro. O golpe já aconteceu: na política, cultura e nas artes, na ciência e nas comunicações. Bolsonaro vem pautando uma agenda anacrônica de discussões, impondo um debate e dispersando o foco. A Terra é plana? Democracia ou ditadura?

 

Opera em nome de uma bandeira que já se esvaziou e se perdeu. Seus seguidores são como zumbis de uma causa fantasmática. O psicanalista observa incoerências e contradições. Bolsonaro proclama Deus acima de todos, mas no trato da pandemia, ou nas suas bravatas de torturador, não respeita o Sexto Mandamento bíblico, que dita: “Não matarás”. Ao criticar o isolamento social necessário à preservação de vidas, invocou a defesa do emprego e da economia, mas não pensa neles ao isolar cada vez mais o Brasil dos investidores e nações estrangeiras, temerosos por suas atitudes sobre clima, democracia e pandemia. E o que sobrou de sua bandeira contra a corrupção, acabou rasgada no cortejo fúnebre de alianças espúrias.

 

Sua aversão aos políticos o jogou nos braços da pior versão deles, por obra e graça de imprudência no diálogo e na gestão de conflitos com outros Poderes e demais forças. O presidente tem o dever de ser o agente aglutinador — e não desagregador. Assim, buscando salvadores da pátria, os brasileiros acabam elegendo seus algozes. Depois de um Lula e seu petismo ofendido por ter sido desmascarado em suas tramas de corrupção, agora temos um capitão magoado e vingativo por não conseguir se movimentar fora do vestuário democrático — que ele, decididamente, não sabe usar”, encerra o psicanalista.

 

O outro texto é de autoria da jornalista e documentarista Dorrit Harazim, nascida na Croácia e radicada no Brasil. O título de sua coluna é “Abraço de afogado”:

 

Um silêncio nunca consegue ser de todo silencioso. Mais de meio século atrás, o compositor de música contemporânea John Cage sentou-se ao piano do Maverick Concert Hall em Woodstock (pois é, Woodstock), no Estado de Nova York, e apresentou a peça que o tornaria célebre. Durante 4 minutos e 33 segundos “tocou” o que seriam três movimentos com as mãos imóveis sobre o teclado fechado. Daí o nome da peça, “4:33”, e o estrondo que fez. A obra continua a ser apresentada por pianistas clássicos mundo afora, com cada plateia preenchendo o desconfortável silêncio ouvindo os sons ao redor. São sons do cotidiano imprevisível — um tossir, um ranger, um respirar pesado, um roçar de papel — que em salas de acústica afinada adquirem peso novo. No fundo, cada um ouve o que não pretendia escutar.

 

O abraço de três segundos desta quinta-feira entre o presidente Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub também se presta a leituras múltiplas. Cada um interpreta como quiser, mas não é ilícito ver na cena o abraço de um afogado. Um só — Bolsonaro.

 

Dadas as circunstâncias, os náufragos naquele enlace forçado deveriam ser dois — o ministro da Educação defenestrado e o chefe de Estado no seu dies mais horribilis desde a posse. Só que Weintraub pôde se programar para a cena, enquanto a explosiva prisão de Fabrício Queiroz horas antes deixara o presidente à míngua de oxigênio. Para o vídeo de três minutos em que anunciou sua demissão, Weintraub se apresentou de paletó aberto e mão no bolso, com uma sem-cerimônia estudada e cafajeste, sob medida para os “muitos Weintraubs” que ele disse ter descoberto no Brasil. Agraciado com um cargo de R$ 1,3 milhão anuais no Banco Mundial em Washington, disporá, se efetivado, desse colchão de distância das investigações judiciais que o envolvem no inquérito das fake news. Ainda que venha a ser alcançado pela Justiça, contudo, jamais conseguirá pagar a dívida histórica que contraiu com toda uma geração de brasileiros: ele foi, até o ultimíssimo decreto, o ministro da Educação mais ruinoso da História do Brasil.

 

Já Bolsonaro, seja na cena do abraço ou longe dela, não tem para onde ir. Encolhido, olhar vazado e desprovido de seu talento para farejar fraquezas alheias e improvisar, o presidente pareceu de cera no “abracinho” obtido a fórceps por Weintraub. Pouco a ver com o desconforto em demitir o décimo membro do seu Ministério. Tudo a ver com a implosão do esconderijo de Fabrício Queiroz. Amigo há décadas do atual presidente, Queiroz atuou como faz-tudo ao hoje senador Flávio, enquanto o filho 01 foi deputado estadual do Rio. Por isso, caso decida falar, Queiroz será a testemunha mais apta a elucidar a teia de ligações perigosas do clã Bolsonaro. Como escreveu a jornalista Míriam Leitão, o nome “rachadinha”, no diminutivo como é da cultura carioca, reduz o peso do crime que lhes é imputado. Trata-se, no mínimo, de desvio de dinheiro público, com fortes indícios de ser muito mais. A parceria tóxica com a criminalidade miliciana, se comprovada, apertará o cerco a um presidente já sitiado por outros inquéritos, com potencial de levar à sua cassação ou impeachment.

 

Teve efeito bumerangue a gritante mudez do presidente da República no dia da prisão de Queiroz. Assim como a obra “4:33” de John Cage adquire vida própria pelos ruídos fora da cena, o fatal silêncio de Bolsonaro na quinta-feira foi atropelado pelo desenrolar de fartos acontecimentos em tempo real. A diferença, claro, é que o músico vanguardista americano teve no silêncio a sua criação. Já Bolsonaro recorreu ao silêncio como refúgio para o medo. Embrulhado numa jaqueta de tamanho acima do necessário na live semanal, na noite de quinta-feira, parecia outro homem. Encolhera.

 

Entre os protagonistas principais da trama atual, a figura do advogado de melenas graúnas Frederick Wassef é a mais exótica até agora. Apesar de ser o advogado oficial de Flávio Bolsonaro e se dizer causídico do presidente (ou então, justamente por isso), teve a péssima ideia de manter Queiroz por meses em um sítio de sua propriedade, ao abrigo de uma eventual diligência do Ministério Público do Rio de Janeiro.

 

Agora que a casa caiu, a esparrela das movimentações financeiras dos Bolsonaro será escancarada mais cedo do que tarde. Ela se encontra com um Brasil de mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, um corolário de 50 mil mortos, um Ministério da Saúde à deriva e um governo insano.

 

Neste Brasil o silêncio começou a deixar de ser uma opção. Melhor assim”.

 

Ouça o comentário de Anderson Gomes:

 

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