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Fugindo um pouco da política institucional, eu gostaria de dedicar o nosso espaço editorial de hoje a uma interessante análise do professor do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Eduardo Martins, comentarista nosso aqui no Faixa Livre, acerca de um debate que ocorreu recentemente sobre a luta do movimento negro no país. O título do texto é “Marxismo, liberalismo e a questão racial no Brasil”:
“Observando o debate entre Jones Manoel, Letícia Parks e Djamila Ribeiro, gostaria de ponderar o seguinte: não há um único movimento negro, como não há um único movimento operário, um único movimento LGBT, um único movimento feminista e nem uma única versão de marxismo. Lênin e Rosa Luxemburgo romperam com a II Internacional e o Partido Social Democrata Alemão, que seguiu os caminhos de Kautsky ou de Bernstein apoiando a guerra e o imperialismo.
Se há frações do movimento negro socialistas e marxistas, há outras burguesas e liberais, que entendem que Revolução é criar uma burguesia negra.
Nos debates sobre a questão racial nos Estados Unidos dos anos 60 e 70, isso foi amplamente discutido por suas lideranças. O ponto culminante dessa polêmica foi a carta aberta de Eldridge River, ministro da informação do Black Panther Party, desde seu exilio na Argélia, a Stokely Carmichael, primeiro ministro demissionário dos Panteras Negras. River, que reivindicava o marxismo-leninismo, dizia que não haveria solução social para os pretos nos Estados Unidos enquanto não houvesse solução para os trabalhadores brancos, indígenas, esquimós, mexicanos, portoriquenhos e chineses.
Acusa Carmichael de colaborar com Richard Nixon, atacar a unidade proletária em nome de outra em torno da cor da pele, agregando direita e esquerda afro-americana como grupo de pressão para viabilizar a formação de uma burguesia preta no capitalismo estadunidense. River aponta que este caminho, mesmo se bem-sucedido, não resolveria os problemas sociais do capitalismo estadunidense, seu vínculo estrutural com o racismo e muito menos os problemas da população negra na África, no Caribe e no mundo, alvos do imperialismo estadunidense que continuaria a seguir, mesmo modificando os tons de suas cores.
Percebendo o risco político da questão racial e sua penetração crescente entre estudantes e a população, a partir da crise do Vietnã e das manifestações de massa de afrodescendentes e trabalhadores, a burguesia liberal estadunidense, vinculada às leis de Jim Crown até os anos 1960, resolveu se transformar na campeã mundial do antirracismo e dar lições para conter seu potencial revolucionário. Para isso, passou a financiar um enfoque da questão racial que fosse um dique à realização da proposição de Marx, ‘trabalhadores de todo o mundo, uni-vos’.
Rompeu-se a unidade dialética entre classe social e questão racial por uma visão que estimulou a formação de grupos corporativos identitários que competissem entre si por um lugar ao sol no capitalismo. Ao invés de trabalhadores de todo o mundo, uni-vos, trabalhadores de todo o mundo compitam por um lugar no paraíso da prosperidade do capitalismo calvinista, que é para poucos.
Aqui no Brasil, a visão liberal tem sido fortemente difundida pelo Banco Mundial, pelas fundações norte-americanas, por grupos políticos que querem reformas moderadas no capitalismo dependente e pela Rede Globo. Pretende-se negar o genocídio dos trabalhadores pretos ou quase pretos de tão pobres e periféricos, com exemplos pontuais e bem-sucedidos de ascensão à ordem burguesa. Para estabelecê-la, tenta-se camuflar as diferenças, calar o debate e impor um modelo único que é o da integração à ordem burguesa, sob o conceito de empoderamento. Usa-se a intimidação para restringir o debate e agora ameaças de processo judicial.
Na África do Sul, o Cyril Ramaphosa, herdeiro de Mandela, é o representante legal da Coca-Cola no país e um dos seus homens mais ricos. A África do Sul pós-Apartheid é uma sociedade muito melhor que a anterior. Gerou uma burguesia negra, mas continua a ser um dos países mais desiguais do mundo e as denúncias de corrupção contra segmentos do CNA são fortíssimas.
Acho compreensível e legítimo que haja um movimento negro burguês. A grande diferença entre brancos e negros no Brasil não está em sua distribuição na classe trabalhadora, mas na sua distribuição na classe dominante.
Todavia, é preciso saber qual é a real bandeira política de cada uma e cada um, o que queremos apoiar e até onde”.
Ouça o comentário de Anderson Gomes: