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Por Arthur Koblitz*
Sobre o BNDES, foram feitos dois anúncios nos dois últimos domingos. O total de valor apresentado pelo presidente do banco Gustavo Montezano é de R$ 97 bilhões, que corresponderia à contribuição do BNDES para o combate aos efeitos econômicos dessa crise do coronavírus. Para você entender os números, é importante decompor esse pacote. Vamos acompanhar a decomposição que o próprio presidente fez na live em que anunciou as medidas: R$ 20 bilhões desses R$ 97 bilhões correspondem a transferências de recursos que estão disponíveis para o BNDES, recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) para o FGTS.
Entendo primeiro que essa medida não deveria contar exatamente como uma espécie de atuação do BNDES. O que está acontecendo na prática é que o BNDES está abrindo mão de instrumentos para combater com as ferramentas, os produtos que tem ou que pode inventar, está abrindo mão de recursos para que sejam usados por outros órgãos, outras instituições, no caso me parece que será a Caixa Econômica porque esses R$ 20 bilhões são transferidos do FAT para o FGTS.
Para mim, isso é como se você tivesse um grande incêndio na cidade e o Corpo de Bombeiros apresentasse como uma de suas medidas emprestar parte do seu pessoal e dos seus carros para a polícia fazer o trabalho dela. Se é um incêndio, você espera que o Corpo de Bombeiros esteja integralmente dedicado a atuar a apagar aquele incêndio usando todos os recursos que ele tem disponível. O trabalho da polícia pode ser muito nobre, mas trata-se de um incêndio, é o objeto da ação direta fundamental do Corpo de Bombeiros.
O BNDES está mais ou menos assim para uma crise, uma depressão. O BNDES é um instrumento de ação contracíclica, tem várias finalidades, várias ações que ele poderia se envolver usando ao máximo os seu recursos. Então os primeiros R$ 20 bilhões que foram anunciados, na verdade, são uma transferência de recursos para o FGTS. Esses R$ 40 bilhões que foram recentemente anunciados não envolvem um tostão do BNDES, são R$ 40 bilhões do Tesouro para ajudar a questão da folha de pagamento, são empréstimos a uma taxa fixa anual de 3,75% para as empresas conseguirem financiar suas folhas de pagamento, o dinheiro entraria na conta do trabalhador.
Esse recurso é do Tesouro que vai ser garantido em grande medida pelo Tesouro, o BNDES não entra com financiamento, nem entra assumindo risco, entra simplesmente como um intermediário, de uma forma administrativa. O banco desenvolveu toda uma tecnologia para manter um acompanhamento, o desembolso dos bancos. Todo mundo sabe que o BNDES trabalha diretamente, mas também metade do seu desembolso é via intermediários financeiros, bancos comerciais, então o banco andou desenvolvendo toda tecnologia para fazer o desembolso e o acompanhamento de todas essas operações, isso agora vai ser usado com essa ferramenta de R$ 40 bilhões.
É uma ferramenta importante, fruto de um desenvolvimento tecnológico do banco para fazer isso com um acompanhamento muito próximo, mas não é o banco usando o seu poder de fogo financeiro para operar, é o banco simplesmente funcionando como apoio administrativo. Dos R$ 97 bilhões, tenho até agora R$ 60 bilhões que não dá para falar que são desembolsos do BNDES para combater a crise, R$ 20 bilhões são transferência e R$ 40 bilhões são, na verdade, o banco sendo usado como instrumento administrativo para repassar esses recursos.
Depois, temos R$ 30 bilhões que correspondem a uma suspensão de pagamento do serviço da dívida das empresas que já têm crédito com o BNDES. São R$ 11 bilhões de operações indiretas e R$ 19 bilhões de operações diretas. Isso também não corresponde a desembolso do banco, é simplesmente um volume de recursos que se estima que não está sendo cobrado das empresas. As empresas vão solicitar para o BNDES, no caso das operações diretas. No caso das operações indiretas, vão solicitar aos bancos com que elas contraírem empréstimos e vão pedir essa suspensão por seis meses.
Essa suspensão já estava ocorrendo por decisão da Febraban (Federação Brasileira dos Bancos), mas com prazo menor, de 70 dias, ou seja, pouco mais de dois meses. O BNDES está oferecendo uma suspensão de pagamento de seis meses para o seu financiamento. É uma medida importante e a racionalidade dela, é óbvio, já estava presente na própria ação da Febraban. Se os bancos não entrarem suspendendo desses pagamentos, o que pode acontecer é que as empresas não vão pagar de todo jeito. Você está fazendo isso para tentar organizar o inadimplemento, vamos pactuar para que não haja uma quebra de contrato das empresas com os bancos, o banco fazendo um prazo maior.
Isso é importante, mas não envolve dinheiro novo, o banco desembolsando novos recursos de crédito, envolve simplesmente uma mudança intertemporal dos pagamentos que as empresas fariam de qualquer jeito. Elas deixam de pagar agora para pagar daqui a seis meses, mas vão ter de pagar, os prazos de financiamento não foram alterados, as empresas vão continuar pagando o mesmo prazo que estava contratado antes. Então não foram nem refinanciamentos, é só uma pausa no pagamento dos serviços da dívida por seis meses.
Falei que são R$ 19 bilhões de operações diretas, isso negociado diretamente com o BNDES, ele tem autonomia para fazer isso. O BNDES, quando opera diretamente, trabalha mais com grandes empresas e, para empresas menores, que os financiamentos costumam ocorrer através de via indireta, essa suspensão de pagamentos vai depender do acordo dos bancos, e isso é uma tremenda questão, se os bancos vão ou não topar e que critérios vão usar para aceitar essa suspensão de pagamento.
Podemos imaginar que os R$ 19 bilhões que o BNDES tem autonomia para decidir a suspensão, vão ser suspensos, mas os R$ 11 bilhões que são de operações indiretas e dependem do aceite dos bancos comerciais, não sabemos quanto disso realmente vai se concretizar, vai corresponder às suspensões de pagamentos, porque os bancos comerciais podem ter entendimento de que não vale a pena fazer a suspensão e decidam continuar cobrando das empresas o pagamento desse financiamentos.
Então R$ 90 bilhões dos R$ 97 bilhões não envolvem funding (financiamento) do banco em operações do BNDES, e os outros R$ 7 bilhões? Vamos começar por uma boa notícia para não parecer que meu relato é totalmente pessimista. R$ 2 bilhões são muito importantes, a gente já vinha cobrando do banco isso, são para financiamentos na área de saúde. Parece que os financiamentos foram feitos de uma forma muito flexível, os produtos são muito flexíveis, são linhas aparentemente ousadas que o banco admite para a saúde. Isso é uma coisa boa, é um avanço, só acho que demorou muito para ser anunciado.
Dei algumas declarações na imprensa desde a semana retrasada cobrando que esses financiamentos para a saúde saíssem. Tivemos um episódio bem desagradável, diria muito mais que desagradável, revoltante, que foi uma operação de apoio à produção de testes à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) que o BNDES articulou e o presidente do banco simplesmente vetou porque alegou que o Ministério da Saúde já poderia dar conta de fornecer recursos para a Fiocruz produzir mais testes, mas todo o processo estava negociado do banco com a Fiocruz e não faz o menor sentido falar que tem dinheiro sobrando no Ministério da Saúde.
O Ministério da Saúde tem de arcar com um monte de despesas, se o BNDES tinha condições de financiar a produção de testes para a Fiocruz, me parece que deveria fazer, mas o presidente Gustavo Montezano vetou essa linha. Ele reconheceu isso depois da primeira live dele. É importante salientar que, na primeira live, ele nem anunciou alguma coisa para a saúde, ele prometeu produtos setoriais. Na segunda live, ele apareceu com essa linha e é uma boa notícia, chegou atrasada, mas que bom que chegou. O banco tem expertise em trabalhar com empresas da área de saúde, com as fundações governamentais que trabalham na área de saúde.
Então R$ 92 bilhões eu já expliquei, faltam R$ 5 bilhões que correspondem a uma linha de capital de giro para pequenas e médias empresas. Essa linha é totalmente indireta, ela depende dos bancos comerciais para operar, não há notícias de que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica estão envolvidos nessa linha. Não quero entrar em muitos detalhes porque pode ficar cansativo, mas o problema principal desta linha é que ela já estava operando, o produto já existia. O que o banco fez de verdade foi simplesmente permitir que empresas médias maiores se tornassem também possíveis beneficiárias dessa linha, ampliou o universo de empresas que podem tomar recursos dessa linha, e houve uma ampliação no limite de crédito que empresas individuais podem tomar, mas as condições financeiras em termos de taxa permaneceram as mesmas.
O impacto adicional dessa linha certamente é menor que os R$ 5 bilhões anunciados, ele corresponde a um valor menor do que esses R$ 5 bilhões porque é a previsão de valor total a ser desembolsado para pequenas e médias empresas e, por exemplo, as pequenas empresas que já poderiam se beneficiar dessa linha vão continuar se beneficiando na mesma situação. Para concluir, acho que o mais grave, o mais decepcionante do que foi anunciado até agora é que não parece ter sido construída uma articulação entre BNDES e bancos públicos. Me refiro aqui a Caixa Econômica, Banco do Brasil, mas também aos bancos regionais de desenvolvimento, no sentido de organizar essa introdução de crédito na economia de uma forma bem capilar.
Se priorizou a interação do BNDES com bancos privados, e a lógica privada nesse momento de crise é muito clara: os bancos estão com aversão a risco. Acho que há muito risco de que, mesmo essas iniciativas tímidas, fiquem aquém do que elas poderiam gerar porque vão passar por um filtro que está ligado a uma lógica privada. O momento pediria uma ação pública coordenada do BNDES com outros bancos comerciais públicos no sentido de viabilizar financiamentos a taxas módicas sem grande repasse de margem de risco dos bancos privados para as empresas.
Nós estamos aqui na AFBNDES pensando em propostas, tenho falado de várias coisas, em breve pretendemos anunciar isso. Estivemos esperando um pouco para ver o que o banco apresentava. Achamos que, até agora, faltou ousadia, faltou uma visão da crise que está acontecendo. Achamos que a direção do banco sofre uma influência negativa dos chefes principais do comando econômico. Não é do presidente da República, que é melhor nem comentar, virou uma anomalia internacional a posição dele sobre a crise, e temos um ministro da Economia que é a pessoa errada para lidar com essa crise.
É um economista muito liberal que passou décadas sugerindo que quando chegasse ao poder, ele mostraria o que é realmente uma gestão liberal na economia, todo mundo que governou a economia no Brasil durante esses últimos 30 anos seria comunista ou social democrata e ele agora mostraria o que um ‘Chicago Old’ acha que deve ser feito com a macroeconomia.
Isso fracassou retumbantemente no primeiro ano e agora está acontecendo uma crise que exige medidas keynesianas. Esse não é o homem correto para estar à frente desse projeto. O que estamos vendo é o resultado lógico dessa escalação equivocada do líder da condução econômica do país. O presidente do BNDES é fruto de um casamento do Bolsonaro com o Paulo Guedes. Ele é o indicado do Ministério da Economia, trabalhava já com o Paulo Guedes e, de outro lado, é amigo dos filhos do Bolsonaro, então é um executivo muito influenciado por essas orientações e não surpreende que não tenha se destacado pela ousadia na proposição de medidas para o BNDES.
Queria acrescentar mais um ponto que achamos fundamental, a revisão da taxa de juros do banco, isso merece um comentário específico. Já falei aqui no Faixa Livre várias vezes sobre a mudança que houve na taxa de juros do BNDES durante o governo Temer, mas hoje o banco tem uma taxa muito desfavorável. A taxa do banco hoje tem referência na NTN-B de cinco anos, que é uma taxa que está ficando cara. Achamos que o banco deveria ter mais flexibilidade na formação da sua taxa de juros, pelo menos diferentes custos de referência. Um deles deveria ser a própria Selic e deveríamos contar com redutores nessa taxa.
Infelizmente não sabemos qual é a capacidade, a disposição deste governo de absorver isso. Hoje temos de colocar dinheiro na economia e, para que isso seja possível, temos de colocar esse dinheiro com taxas módicas. Temos de atravessar, conseguir fugir desse filtro da lógica do setor privado na hora de fazer empréstimo. Acho que já falei muito de BNDES.
Poderia dizer sobre essa renda mínima de R$ 600 [aprovada pelo Congresso] que qualquer coisa que o presidente Bolsonaro falasse fizesse algum sentido ou tivesse alguma racionalidade, obviamente alguém tão preocupado com pessoas que estão no setor informal deveria ter lutado para uma renda mínima superior a R$ 600 e, na verdade, a proposta do governo foi de indecentes R$ 200. É mais uma prova de incoerência do mundo nonsense em que vive o nosso presidente da República. Vou ficar por aqui, agradeço a oportunidade de mais uma vez estar contribuindo com o Faixa Livre. Até a próxima.
* Arthur Koblitz é economista e presidente da Associação de Funcionários do BNDES (AFBNDES).
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